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Sustentabilidade da Cadeia da Bioenergia: Entre o Protagonismo na COP 30 e os Desafios do Agronegócio Brasileiro

Por Ágata Turini, especialista em agronegócio e bioenergia.

O Brasil se prepara para sediar a 30ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (COP 30) em novembro de 2025, na cidade de Belém (PA). O evento posiciona o país como uma liderança natural na transição energética, especialmente no campo da bioenergia. Com um histórico de 50 anos do programa Proálcool e uma matriz energética notavelmente renovável, o governo brasileiro pretende usar a conferência como um palco para apresentar seus avanços e ditar o ritmo das discussões globais sobre combustíveis sustentáveis.

No entanto, um profundo paradoxo marca este momento: enquanto o discurso oficial celebra o potencial da bioenergia como solução climática, a base dessa cadeia produtiva, o agronegócio, enfrenta uma de suas mais severas crises de rentabilidade. Este artigo explora a complexa encruzilhada em que se encontra a sustentabilidade da bioenergia no Brasil, analisando as ambiciosas metas governamentais, as controvérsias internacionais e a dura realidade econômica enfrentada pelos produtores rurais.

Brasil na Vanguarda da Bioenergia: O Palco da COP 30

A escolha de Belém como sede da COP 30 é altamente simbólica, trazendo o debate climático para o coração da Amazônia. Para o governo brasileiro, é a oportunidade de transformar a conferência na “COP da bioenergia”, como afirmado por diversas autoridades, incluindo a assessora especial do Ministério de Minas e Energia, Mariana Espécie [1].

A celebração dos 50 anos do Proálcool, em 14 de novembro de 2025, durante a COP, reforça essa narrativa de pioneirismo. O programa, criado em 1975 para reduzir a dependência do petróleo, consolidou o Brasil como o maior produtor de etanol de cana-de-açúcar do mundo, uma fonte de energia que, segundo estudos, reduz em média 89% as emissões de gases de efeito estufa em comparação com a gasolina [2].

O vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Geraldo Alckmin, tem sido um dos principais porta-vozes dessa visão otimista. “Enquanto o mundo ainda debate caminhos, nós já temos resultados concretos, legislação moderna e governança integrada”, declarou durante a pré-COP30 em Brasília [3]. Essa confiança se traduz em uma proposta ousada que o Brasil planeja levar à conferência: um acordo para quadruplicar o uso global de “combustíveis sustentáveis” ‒ incluindo biocombustíveis, biogás e hidrogênio
‒ até 2035, em comparação com os níveis de 2024. A iniciativa, que já conta com o apoio de países como Itália e Japão, visa posicionar o Brasil no centro de um novo mercado global de energia limpa, com potencial para atrair entre 30 e 50 bilhões de dólares em investimentos, caso um mercado regulado de carbono seja efetivamente estabelecido, segundo estimativas de especialistas como Marcelo Lyra, vice-presidente da Acelen [1].

Medidas Governamentais: Avanços e Ambições

Para sustentar sua posição de liderança, o Brasil tem implementado uma série de políticas públicas robustas. A mais significativa é a Lei do Combustível do Futuro, sancionada em outubro de 2024. Esta legislação estabelece um novo paradigma para a política energética e industrial do país, com metas claras de descarbonização. Entre os pontos principais, destacam-se a criação de um mandato para o uso de Combustível Sustentável de Aviação
(SAF), começando com 1% em 2027 e chegando a 10% em 2037, e o aumento da mistura de etanol anidro na gasolina de 27% para 30% (E30). A lei também prevê o aumento da mistura de biodiesel no diesel para 15%. Com essas medidas, o governo projeta evitar a emissão de 705 milhões de toneladas de CO2 até 2037 [3].

Paralelamente, o Programa Mobilidade Verde (Mover) incentiva a inovação e a sustentabilidade na indústria automotiva, estabelecendo metas como a exigência de 80% de reciclabilidade nos veículos e um limite máximo de emissão de 83 gramas de CO2 por quilômetro rodado. Há ainda propostas em discussão no Congresso que buscam acelerar ainda mais essa transição, como a do deputado Hugo Motta, que defende o aumento da mistura de etanol na gasolina para 35% [6]. Essas políticas, embora ambiciosas e necessárias para a agenda climática, criam um ambiente de previsibilidade para grandes investimentos, mas não garantem, por si sós, a sustentabilidade econômica para o elo mais fraco da cadeia: o produtor rural.

O Contraponto Necessário: A Crise do Agronegócio

Enquanto o governo celebra o futuro da bioenergia, o presente do agronegócio é de extrema dificuldade. Uma “tempestade perfeita” de fatores macroeconômicos, climáticos e de mercado mergulhou o setor em uma crise de rentabilidade sem precedentes.

O cenário de juros altos, somado a um tarifaço imposto pelos Estados Unidos que, segundo a FAESP, reduziu em 75% as exportações de certos produtos para aquele país, desestimulou o investimento. Uma pesquisa com produtores rurais paulistas revelou um dado alarmante: 53,4% não pretendem investir na safra 2025/26. Entre os produtores de grãos, matéria-prima essencial para biocombustíveis como o etanol de milho, o pessimismo é ainda maior, com mais de 70% afirmando que não farão novos aportes [7].

Os números do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea/Esalq) confirmam a gravidade da situação. Para a safra 2025/26, projeta-se uma queda de 92% na margem bruta do milho e de 36,7% na da soja, em comparação com o ciclo anterior. O aumento nos custos de produção, especialmente dos fertilizantes (com alta de 20%), combinado com a estagnação ou queda nos preços das commodities, faz com que, para muitos, a conta simplesmente não feche. O custo total para produzir um hectare de soja (R$7.800) já supera a receita bruta projetada (R$ 6.600), resultando em uma perda de R$ 1.200 por hectare para quem depende de capital de terceiros. Para o milho, a perda pode chegar a R$ 1.800 por hectare [8].

Este cenário agrava o endividamento e ameaça a sobrevivência de muitos produtores, especialmente arrendatários e aqueles mais alavancados. “Com a crise crescente, veremos uma redução no número de produtores no campo e maior concentração de terra”, alerta Glauber Silveira, diretor executivo da Abramilho [8]. O paradoxo é evidente: como sustentar uma ambiciosa agenda de expansão da bioenergia se os produtores que fornecem a matéria-prima estão operando no vermelho?

Controvérsias Ambientais: O Debate Internacional

A aposta do Brasil nos biocombustíveis não está isenta de críticas no cenário internacional. Organizações ambientais e think tanks europeus levantam sérias questões sobre a verdadeira sustentabilidade dessa fonte de energia. Um relatório do influente grupo Transport & Environment (T&E) argumenta que, ao considerar os impactos indiretos do uso da terra e do desmatamento, os biocombustíveis podem ser responsáveis por 16% mais emissões de CO2 do que os combustíveis fósseis que substituem [9].

O estudo aponta que a expansão das culturas para biocombustíveis exigiria, até 2030, uma área equivalente ao território da França, competindo diretamente com a produção de alimentos e pressionando ecossistemas. Segundo o T&E, um quinto do óleo vegetal produzido no mundo já é destinado a veículos, não à alimentação, e são necessários 3.000 litros de água para percorrer 100 km com biocombustíveis. Em contrapartida, painéis
solares poderiam gerar a mesma quantidade de energia usando apenas 3% da terra [9].

Essas críticas, repercutidas por veículos como o jornal britânico The Guardian, formam uma narrativa de cautela que se contrapõe ao otimismo brasileiro, destacando os riscos de insegurança alimentar e perda de biodiversidade associados à monocultura em larga escala.

Caminhos para uma Transição Sustentável e Viável

Superar essa complexa encruzilhada exige uma abordagem que integre as metas climáticas com a sustentabilidade econômica de toda a cadeia produtiva. Não basta criar mandatos de uso; é preciso garantir que o produtor rural tenha condições de produzir de forma rentável e sustentável. Isso passa, fundamentalmente, por políticas de crédito acessível e por um sistema de seguro rural que funcione e tenha subvenção governamental adequada, problemas crônicos apontados pelos próprios produtores [7].

Além disso, a transição energética precisa ser sinônimo de inovação e agregação de valor no campo. A rastreabilidade e a certificação da produção, garantindo que a expansão da bioenergia não ocorra sobre áreas de vegetação nativa, são cruciais para responder às críticas internacionais e acessar mercados premium. O investimento em tecnologias que aumentem a produtividade e reduzam os custos, como a agricultura de precisão e a biotecnologia, é igualmente vital. A diversificação das fontes de bioenergia, com o crescimento do etanol de milho, do biogás a partir de dejetos e do SAF, também pode criar novas fontes de renda e fortalecer a resiliência do setor.

Finalmente, o mercado de carbono, se bem regulamentado, pode se tornar uma fonte de receita adicional para o produtor que adota práticas sustentáveis, como o sistema de integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF). “O produtor não define o preço que recebe, mas pode — e deve — administrar bem suas contas para evitar decisões equivocadas”, resume Tirso Meirelles, presidente da Faesp [7]. A sustentabilidade, portanto, deve ser
ambiental, social e, crucialmente, econômica.

Conclusão

O Brasil chega à COP 30 com a oportunidade histórica de liderar a agenda global de bioenergia, apresentando ao mundo uma alternativa concreta aos combustíveis fósseis. No entanto, o sucesso dessa empreitada não será medido apenas pelas metas ambiciosas firmadas em acordos internacionais, mas pela capacidade do país de construir uma cadeia produtiva que seja verdadeiramente sustentável em todas as suas dimensões. O atual cenário de crise no agronegócio é um alerta contundente de que a transição energética não pode ser feita às custas da viabilidade econômica dos produtores rurais.

Conciliar o protagonismo climático com a realidade do campo é o grande desafio. Isso exigirá um diálogo franco e políticas integradas que envolvam governo, setor produtivo, indústria, comunidade científica e sociedade civil. A bioenergia tem, sim, o potencial de ser uma solução climática e um motor de desenvolvimento para o Brasil, mas apenas se a sustentabilidade for semeada, cultivada e colhida em cada hectare, garantindo que a prosperidade floresça do campo à bomba de combustível. Os próximos meses serão decisivos para definir se o Brasil conseguirá transformar seu potencial em um legado duradouro ou se o discurso da liderança se perderá em meio às dificuldades de sua própria
base produtiva.

Referências

[1] CNN Brasil. (2025, 15 de outubro). Brasil pode liderar transição energética e uso de biocombustíveis. Obtido de https://www.cnnbrasil.com.br/economia/brasil-pode-liderar-transicao-energetica-e-uso-de-biocombustiveis/

[2] Cana Online. (2024, 19 de julho). Desafios e oportunidades para o Brasil liderar a revolução dos biocombustíveis com etanol de cana-de-açúcar. Obtido de http://www.canaonline.com.br/conteudo/desafios-e-oportunidades-para-o-brasil-liderar-a-
revolucao-dos-biocombustiveis-com-etanol-de-cana-de-acucar.html

[3] Eixos. (2025, 13 de outubro). Com bioenergia, Brasil tem resultados concretos para mostrar na COP30, indica Alckmin. Obtido de https://eixos.com.br/transicao-energetica/cop/com-bioenergia-brasil-tem-resultados-concretos-para-mostrar-na-cop30-indica-alckmin/

[4] Sustainability Magazine. (2025, 21 de outubro). What Can The World Learn From Brazil’s Bioenergy Sector?. Obtido de https://sustainabilitymag.com/news/what-can-the-world-learn-from-brazils-bioenergy-sector

[5] Gazeta Mato Grosso. (2025, 16 de outubro). Brasil pode dobrar produção de biocombustíveis até 2050 sem desmatar, indica estudo do IEMA. Obtido de https://gazetamatogrosso.com.br/brasil-pode-dobrar-producao-de-biocombustiveis-ate-2050-sem-desmatar-indica-estudo-do-iema/

[6] CNN Brasil. (2025, 19 de outubro). Hugo diz que “lutará” por aumento da mistura de etanol na gasolina para 35%. Obtido de https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/hugo-diz-que-lutara-por-aumento-da-mistura-de-etanol-na-gasolina-para-35

[7] Agrolink. (2025, 21 de outubro). Desafios e estratégias do agronegócio paulista para a safra 2025/26. Obtido de https://www.agrolink.com.br/noticias/faesp-discute-desafios-e-estrategias-do-agronegocio-paulista-para-a-safra-2025-26_507187.html

[8] Valor International. (2025, 17 de outubro). Soy and corn farmers could face losses this harvest. Obtido de https://valorinternational.globo.com/agribusiness/news/2025/10/17/soy-and-corn-farmers-could-face-losses-this-harvest.ghtml

[9] The Guardian. (2025, 16 de outubro). Brazil to ask countries at Cop30 to vastly increase biofuel use, leak suggests. Obtido de https://www.theguardian.com/environment/2025/oct/16/brazil-ask-countries-quadruple-biofuel-use-leak-suggests

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